O que é Metafísica? E por que isso é extremamente importante!
Neste artigo tecerei alguns comentários sobre metafísica, a partir do ponto de vista tradicionalista (Guénon, Schuon, Coomaraswamy) e do enfoque de sábios ( sim, eles eram mais que filósofos), como Plotino, Lao Tse e Shankaracharya.
De acordo com essa turma, pode-se dizer que a metafísica abarca as seguintes características:
Não é meramente um ramo da filosofia, que trata o que para Aristóteles estava além da física. Lembrando que a Física para esse filósofo não era a mesma que a nossa Física moderna, mas sim o “corpo” de todas as ciências naturais, ou seja, muito mais ampla que aquela.
É um conhecimento “supra humano”, que transcende o conhecimento racional. Desde Aristóteles está enraizado na nossa mente que é a razão que nos diferencia dos animais. Ela é o que, portanto, nos torna humanos. Acontece que a razão não é o teto de nossas possibilidades. A razão, que é por natureza discursiva e tem na linguagem o seu grande instrumento não “alcança” o conhecimento metafísico, que somente é alcançado pelo intelecto puro, intuitivo (parte “espiritual“ do ser humano). Esse foi o erro dos racionalistas e outros tantos filósofos modernos — achar que a realidade humana se limita a razão (ratio dos escolásticos) — e por “Avidya” (conhecimento falso, um dos meios de se obter conhecimento, de acordo com o Vedanta) proclamar o seu próprio limite como o limite de todos, removendo assim, direta ou indiretamente, do terreno de interesses de seus leitores o que está além da “ratio”, o que está além do caráter puramente humano.
Em suma, removendo a parte mais elevada (espírito)da tríade tradicional do “microcosmo” humano ( corpo, psiquê, espírito ) que no macrocosmo corresponde a ordem “espiritual”, aquela que tem ascendência sobre a ordem psíquica e a corporal. Sem o “espírito” e a sua dimensão “espiritual”, o homem se torna “a medida de todas as coisas” e, inevitavelmente, mais cedo ou mais tarde, tem a sua razão submetida por suas emoções e instintos. Aliás, esse é um tema constante na mitologia clássica.
É o que nos mostra o “mito” do rei Arthur e os cavaleiros da távola redonda: Arthur, o rei ( símbolo do espírito) é traído por Guinevere, sua esposa ( símbolo da psiquê), com Lancelot, seu melhor cavaleiro( símbolo do corpo). A traição de Guinevere representa a paixão da alma pelo corpo e o consequente esquecimento do espírito. No mito, a traição gera um desequilíbrio no “reino” de Arthur que simboliza, por sua vez, o microcosmo, o “todo” do ser humano que é corpo, alma e espírito.
A natureza da metafísica é sintética, unificadora e intuitiva. Ela é acessada pelo intelecto intuitivo ( o “olho do espírito” do São Boaventura e o “Olho do Self” do Annamalai Swami ), que é a potência (que não é a razão) que nos permite captar o conhecimento metafísico.
Donde o simbolismo do coração, que não é como muitos pensam o centro das emoções e desejos, mas sim, de acordo com a simbologia da sabedoria perene, o centro da intuição, do intelecto puro, que está além das formas (arupa), além da individualidade ( com as suas simpatias e antipatias) e do tempo/espaço. Pensar com o “coração” é o que há de mais elevado no homem e isso nada tem a ver com emocionalismos e irracionalidade.
A metafísica é a sabedoria buscada pelos filósofos ( amantes ou amigos da sabedoria). Sabedoria esta que para ser alcançada requer, não somente capacidades intelectuais, mas também morais e espirituais. Não basta ter “QI”, é necessário, prioritariamente, ter auto-domínio afetivo, receptividade, discernimento, isto é, “maturidade” para tal.
É a “sophia” dos antigos sábios, a “sapientia” dos medievais, a “jnana” dos hindus e a “ma’rifah” dos islâmicos. É o “coração”, isto é, o intelecto intuitivo que concebe os princípios e insights metafísicos, que são, por sua vez, elaborados e “materializados” pela razão. A razão é instrumento do intelecto puro. É subalterna a este e não o inverso como nos fazem acreditar muitos pensadores modernos, que tendem a considerar o mundo do tamanho de suas próprias limitações e com isso, desacreditar, invalidar e até mesmo ridicularizar a percepção daqueles que os superam. O desprezo, a distorção e a profanação da dimensão metafísica é o que Nietzsche intuía — embora ele mesmo tenha contribuído para o seu descrédito — como a revolta dos “fracos” e “ressentidos” contra os “fortes” e “potentes”.
O entendimento conceitual dos princípios metafísicos é uma coisa — se dá inicialmente pela ordem da razão — e a sua realização é outra, pois se dá pela ordem do intelecto intuitivo, na identificação do sujeito com o conhecimento, na qual o dualismo sujeito e objeto desaparece. Teoricamente pode se “ter” o conhecimento metafísico de forma virtual, todavia, ele só se torna atual, quando é realizado, posto em ato. É aqui que entra o que chamam de “revelação”, “iluminação”, Samadhi, Satori, “expansão” da consciência, intuição intelectual, “eureka”, epifania etc.
Filosofia clássica como caminho preliminar para a sabedoria (metafísica). É a senda dos “mistérios menores”.
Em síntese, a metafísica, vista pela ótica tradicionalista, não é de forma alguma só um ramo da filosofia. Esta última, quando ainda possuía o caráter “tradicional” ( filosofia platônica, por exemplo) correspondia ao aspecto teórico e conceitual do conhecimento metafísico. Em outras palavras, era o caminho preliminar. A etimologia da palavra filosofia evidencia isso muito bem: A palavra philosophia significa “amor pela sabedoria". Quem ama algo, deseja algo, e quem deseja algo vai em busca desse “algo“, precisamente, por ainda não ter esse algo (ou só ter tido um vislumbre dele) — a falta move o desejo. Logo, o filósofo é aquele que caminha em direção a sabedoria, não aquele que tem a sabedoria. O objetivo da Filosofia, nesse sentido, é a fusão com o objeto amado, ou seja, a sabedoria.
É por isso que em civilizações tradicionais o conhecimento metafísico só era “ensinado” depois de um longo período de preparação moral e intelectual daqueles qualificados para receber tal conhecimento. Pode se ver os vestígios disso nas artes marciais asiáticas, nas quais certas técnicas só eram ensinadas após o discípulo se mostrar digno para tal. O mesmo ocorria na “escola” pitagórica, no qual os “iniciados” passavam por certas provas antes de avançar no conhecimento. Outro vestígio, mais recente, se encontra nos graus da maçonaria e de certas ordens iniciáticas relatadas por Gurdjieff, Blavatsky e Henrique José de Souza - no Brasil.
ESoterismo e EXoterismo
Em civilizações nas quais a “tradição” dá forma a todas as coisas (vide a tradicional japonesa de alguns séculos atrás), a metafísica é geralmente “preservada” dentro de uma dimensão “interna” e esotérica de uma “religião” em questão, que é, por sua vez, a sua parte externa, exotérica com “X”. Enquanto essa dimensão interna (parte esotérica) estiver “viva” a religião (parte exotérica, aberta às massas) prospera, de outra forma ela degenera em fanatismos, moralismos, repressões e formalismos (que é, em certa medida, o que vemos na contemporaneidade).
A religião é a aplicação, o desdobramento dos princípios metafísicos na dimensão exotérica, em larga escala — e isso inclui muitas simplificações e adaptações — de acordo com as necessidades e mentalidades dos povos e regiões do planeta, no qual ela atua como elemento de coesão social e base de apoio para o processo de ascensão espiritual — o verdadeiro re-ligare dos latinos.
Nos primórdios do hinduísmo a mentalidade dos povos e o período do ciclo cósmico (teoria das yugas) no qual eles viviam possibilitou uma tradição, em que a distinção entre esoterismo e exoterismo era quase nula. Período no qual a verdade não precisava ser “velada” com tantos véus, nem as pessoas “assustadas” e condicionadas a certas “regras” para entrar na “linha” e ter uma vida mais saudável e próspera. Por isso, uma das tradições que oferece os instrumentos intelectuais mais claros ( pelo menos para os ocidentais) para compreender a metafísica é a hindu.
Na religião grega, a metafísica estava nos mistérios órficos; no judaísmo na Kabbalah; no Cristianismo nas ordens dos cavaleiros templários, no universo de Dante e em sábios como o mestre Eckhart; no islamismo nas ordens sufis e nos ensinamentos de Ibn Arabi; no hinduísmo com o Vedanta e o Advaita vedanta de Shankaracharya; no budismo nos ensinamentos esotéricos apresentados por Nagarjuna; no taoismo no grande Lao Tzu; e no japão, com o Xintoísmo, o Zen e suas expressões nas artes como a arquitetura e a ornamentação.
Por fim, a metafísica não nasce da religião ( entendida conforme a ótica moderna), não depende dela, assim como, não está limitada a nenhuma de suas formas. As religiões são expressões contingentes da essência (metafísica) que é “una” e eterna, todavia com infinitas aplicações, quer seja nas ciências, artes, arquitetura, esportes, sistemas de governo e organização social, entre outras. Inclusive, o termo “metafísica” é contingente e só foi utilizado nessa breve explanação, por sua familiaridade a nós ocidentais, para apontar para algo que está além da forma, dos nomes e de qualquer definição. Foi, portanto, utilizado como símbolo e não como sinal. Cabe lembrar que a simbologia é a “linguagem” metafísica por excelência — o que pode ser vislumbrado claramente pelo estudo de símbolos que estão, “curiosamente”, presentes em muitas civilizações, separadas geográfica e temporalmente por enormes distâncias. Por exemplo — e já finalizando o texto — a mandala, um dos símbolos primordiais do conhecimento metafísico, que está presente em vitrais de catedrais cristãs, em mesquitas, templos budistas etc.
Por: João Gabriel Simões, Psicólogo.
Indicação de leitura: Tratado de Simbólica (Mário Ferreira dos Santos); The Essential Writings of Frithjof Schuon (Seyyed Hossein Nasr); The Essential Rene Guenon - Metaphysics, Tradition, and the Crisis of Modernity (Martin Lings).
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