Positividade tóxica e Inautenticidade

João Gabriel Simões
3 min readMar 23, 2022

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Um dos frutos da vida moderna, a positividade tóxica é a repressão ou rejeição de sentimentos negativos, em prol de uma fachada de positividade, mantida artificialmente. É impor a si mesmo e aos outros a obrigação de estar sempre bem, de alto astral! Sabe aquelas pessoas que olham para alguém passando por um processo depressivo e dizem ( mesmo que bem intencionadas): “pare de ser triste e fique positiva, a vida é bela”? Ou o chefe que fala para o funcionário: “esteja positivo sempre, você consegue”? Então, isso é a positividade tóxica. Ela é tóxica, pois gera um estado de desânimo naqueles que não correspondem ao “dogma” de ser feliz, produtivo e bem sucedido o tempo todo. A supervalorização do lado “positivo” da vida, em detrimento da rejeição do “negativo”, intoxica!

Neste mundo virtual, no qual “todos” são empreendedores de sucesso, sabem ganhar dinheiro, têm relacionamentos satisfatórios, sorriem frequentemente, não desistem nunca e sempre vencem, é um grande pecado ser uma pessoa normal, com altos e baixos, alegrias e tristezas, sucessos e fracassos. O indivíduo olha a sua volta e só vê “positividade”, volta o olhar a si mesmo e percebe que a sua vida não é bem assim e, em seguida, se deprime, isto é, entra em um estado afetivo de despotencialização, que provavelmente não entraria, caso não estivesse nesse ambiente cercado de positividade tóxica.

Nigel Van Wieck — 1990

Essa atmosfera de pseudo positividade, alimentada — a propósito — pela indústria da autoajuda, indústria esta que movimenta bilhões de dólares anualmente, pode ser tão tóxica, ao ponto de incutir na cabeça das pessoas, a ideia de que experimentar sentimentos ditos negativos, como tristeza, raiva, medo, ciúmes e vergonha é errado e reprovável! Ou seja, reparte a alma humana em duas fatias, endeusando a da positividade e demonizando a da negatividade.

Eis algumas consequências disso:

  1. O inverso do autoconhecimento, o que podemos chamar de autodesconhecimento, uma vez que o indivíduo, ao invés de expressar e conhecer seus sentimentos negativos, ao invés de trabalhar seus medos e angústias existenciais, foge de tudo isso à medida que aprende a fingir para si mesmo que está tudo bem, “vestindo” nas redes sociais ou no dia dia uma “fantasia” de positividade, adornada com clichês de autoajuda (Ex: não se preocupe, seja feliz; Apenas continue sorrindo; Se livre da negatividade; Não pense, se mantenha positivo) e postergando ad infinitum o enfrentamento de suas sombras.
  2. Empobrecimento das expressões afetivas e artísticas, que fixadas no espectro da positividade, perdem grande parte da força criativa. Diz o ditado: “é preciso estar triste para poetizar.” É como nos mostra Vinícius de Moraes na letra da música, Samba da Bênção: “Mas pra fazer um samba com beleza…É preciso um bocado de tristeza…Senão, não se faz um samba não.”
  3. Padronização de comportamentos nas redes sociais. Visto que a expressão afetiva dos indivíduos se restringe ao que é considerado positivo, e tendo em conta que a labilidade emocional é desestimulada (justamente por não coadunar com a atmosfera de positividade), os próprios algoritmos das redes sociais, ao modo de um sistema de retroalimentação, contribuem para uma seleção virtual de manifestações, cada vez mais restritas e previsíveis, constituído assim um mundo de simulacros, uma espécie de baile de máscaras, no qual a condição para entrar é deixar de ser o que se é, para ser o que se deve ser. É, em certo sentido, o regime de inautenticidade, o qual o filósofo Heidegger se referia em seus livros: todos são iguais aos outros e nenhum é igual a si mesmo!

Por: João Gabriel Simões

Instagram: @psicologo.joaosimoes

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