Rússia X Ucrânia — O que isso tem a ver com o nosso “Desejo de Guerra”?

João Gabriel Simões
3 min readFeb 24, 2022

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Como diria Freud: o recalcado, cedo ou tarde, retorna. Por mais que na aparência das negociações e encontros entre líderes globais, tudo parecia estar bem — aliás, aparentar é a grande “virtude“ da nossa contemporaneidade líquida — na profundidade das águas inconscientes de muitos deles, a animosidade borbulhava cada vez mais intensa, só esperando uma oportunidade para “emergir“ até o consciente e transformar em ato aquilo que jazia em potência. Independente de culpabilizar este ou aquele jogador político ou este ou aquele país, o fato psicológico que se evidencia é o retorno, o vir à tona de ódios, rancores e medos recentes/ancestrais, que buscam na guerra a sua descarga e “rendenção”.

Neste contexto, desejar a paz é a resposta automática de muitos — estamos programados para isso. Quem não desejaria a paz em uma situação dessas, somente um sádico¹, não? Mas, na sombra desse desejo se oculta aquilo que muitos de nós temem reconhecer, a saber, o desejo de guerra — tão caro a nossa racionalidade — que habita a humanidade. E é esse desejo que vê na ambiência atual a oportunidade de satisfação. Tal como um imã, um conflito global atrai para si, em maior ou menor medida, os desejos de guerra de cada indivíduo ligado a ele: guerra contra si próprio, contra um familiar, conhecido, colega de trabalho, partido, religião, ideologia, país etc. Cada um desses desejos vê no conflito, para o qual os holofotes estão apontados, uma oportunidade substituta de realização, se não pela participação direta no próprio conflito, pelo menos, indiretamente, contribuindo para o “circo pegar fogo“, por intermédio dos meios de comunicação, entre outros recursos.

Mikhail Avilov — 1943

O desejo de guerra está a serviço da força de repulsão e destruição que é diariamente reprimida e sublimada, em cada indivíduo, nas suas relações sociais, mas que de tempos em tempos, precisa se exteriorizar a fim de manter a homeostase do organismo humano. Se ela é suprimida por muito tempo, sem ser canalizada e trabalhada, o resultado é uma explosão fora de controle — ataques de raiva e alguns crimes passionais exemplificam isso muito bem, donde a importância de reconhecer (e não fingir que não existe) esse impulso destrutivo e trabalhá-lo, para não ser vítima dele.

Acontece que essa ambivalência afetiva em buscar por um lado a paz, e, por outro a guerra, que em síntese pode ser expressa nos seguintes binômios: atração-repulsão, amor-ódio, ou como conceitua a psicanálise, Eros-Tânatos, não ocorre só no nível do indivíduo, mas também no nível macro de um grupo, organização e país só para ilustrar. Diante disso, o que será testado nos próximos dias será a capacidade micro (a nível individual) e macro (a nível grupal) de manejar o desejo de guerra, depois de ele ter sido evocado em larga escala no mundo todo. Será ele reprimido ou fomentado? Dispersado ou condensado? Aproveitado por demagogos ou sublimado por virtuosos? Só o tempo dirá…

João Gabriel Simões ( 24/02/2022)

Notas:

(1) Se bem que de acordo com algumas tradições pré-modernas, até mesmo a guerra pode ser utilizada como um caminho para a realização espiritual. Há uma metafísica da guerra, que a considera sagrada e, portanto, desejada em certas circunstâncias.

Referências:

FREUD, Sigmund. Obras completas: O Eu e o Id “autobiografia” e outros textos (1923-1925). Trad. Paulo Cezar Souza. São Paulo: Cia das Letras, 2011. v. 16.

BAUMAN, Zigmund. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

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